Dragões: De criaturas reverenciadas a monstros da Idade Média

Desde os tempos antigos, os dragões apareceram em diversas culturas, ora como seres indomáveis, ora como sinais de boa sorte. No entanto, quando essas criaturas fascinantes passaram a ocupar o centro das lendas cristãs e da iconografia medieval, sua representação mudou drasticamente.

O Dragão na Cultura Medieval

O dragão é uma das imagens mais icônicas da cultura medieval. Longe de ser uma invenção fantástica ou um produto moderno das sagas de J.R.R. Tolkien, os dragões surgiram em mundos simbólicos criados na antiguidade e sobreviveram até os dias de hoje. Na sociedade medieval, os dragões eram classificados de forma semelhante aos animais comuns, e as lendas, histórias e imagens da época ajudaram a torná-los um símbolo duradouro da Idade Média.

Dragões nas Civilizações Antigas

Muito antes da Idade Média, já existia um vasto grupo de criaturas mitológicas com características de dragões ou serpentes em diversas civilizações da antiguidade.

  • Mesopotâmia Antiga: Marduk, a divindade suprema da Babilônia, enfrentou o dragão demoníaco Tiamat, que simbolizava o caos primordial e as águas do mar, para estabelecer a ordem no cosmos e criar o mundo.
  • China Antiga: Os dragões eram criaturas veneradas, responsáveis por proteger e controlar as fontes de água, além de representar saúde, força e boa sorte.
  • Mitologia Grega: Abundam histórias de serpentes ferozes e drakontes, grandes serpentes que agiam como protetores de pessoas, locais sagrados ou objetos prodigiosos, simbolizando a força indomável da natureza. Por exemplo, na história de Hércules, ele foi atacado ainda no berço por duas serpentes enviadas pela deusa Hera. Mais tarde, como punição por seus crimes, o rei Euristeu lhe ordenou que matasse a Hidra de Lerna, um grande monstro marinho com nove cabeças em forma de serpente.

A Figura do Dragão na Idade Média

Durante a Idade Média, esses monstros temíveis foram herdados da antiguidade e moldados para se adaptar à mentalidade da época. Em 313 d.C., o Édito de Milão estabeleceu a tolerância legal ao Cristianismo em todo o Império Romano, o que mais tarde permitiu a Teodósio I transformá-lo na religião oficial de Roma, em 380 d.C. Nesse contexto, o dragão, anteriormente uma figura mitológica, foi gradualmente adaptado para atender aos códigos visuais da nova fé imperial.

Podemos ver essa mudança em pinturas encontradas nas catacumbas cristãs de Roma e em relevos esculpidos em sarcófagos cristãos primitivos. Nessa iconografia, o dragão começa a ser associado ao diabo. Monstros com características de dragão, derrotados por santos ou figuras representando Cristo, simbolizavam o triunfo da Igreja sobre os cultos pagãos e heresias.

A Batalha Apocalíptica e o Dragão na Bíblia

Na narrativa apocalíptica descrita no Livro de Apocalipse, um dragão vermelho com sete cabeças desempenha um papel central. Sua forma remete à Hidra da antiguidade. Com um golpe de sua cauda, ele arrasta um terço das estrelas do céu antes de ser derrotado pelo arcanjo Miguel, que o expulsa dos céus. Em Gênesis, uma serpente tenta Eva a comer o fruto proibido, causando o pecado original e a chamada Queda do Homem. As serpentes aquáticas do mundo grego se fundiram ao Leviatã, um monstro marinho mencionado diversas vezes na Bíblia, e ao grande peixe (dag gadol, no hebraico original) que engoliu o profeta Jonas por três dias.

A Figura do Dragão em Diferentes Culturas

A visualização do dragão variou bastante entre culturas e continentes. Na Bíblia, além do Leviatã, o dragão está ligado à serpente que causa a tentação no Éden. Nos relatos gregos, temos criaturas serpentes de grande importância, que também influenciaram a figura do dragão cristão.

O Dragão na Obra de Isidoro de Sevilha

Foi Isidoro de Sevilha, arcebispo e erudito, quem consolidou a imagem do dragão que se popularizaria durante a Idade Média. Em sua obra Etimologias, uma enciclopédia do início do século VII, ele descreveu o dragão como parte da família das serpentes e o maior de todos os animais. Baseando-se em fontes antigas, o teólogo espanhol classificou o dragão como uma criatura com crista, originária da Etiópia e da Índia, que vivia em cavernas, podia voar e não destruía suas presas com veneno ou mordida, mas com a cauda, com a qual chicoteava ou sufocava suas vítimas (Etimologias, livro XII, capítulo IV).

A Lenda de São Jorge e os Dragões na Etiópia

Sendo um país predominantemente cristão, a Etiópia também possuía suas próprias lendas sobre dragões. São Jorge, padroeiro da Etiópia, Inglaterra e de outros países, é amplamente representado na iconografia cristã etíope, derrotando dragões e liderando soldados contra inimigos que buscavam colonizá-los. Os dragões, retratados de forma serpenteante, também representavam o próprio diabo.

A Evolução do Dragão no Ocidente Medieval

Enquanto no mundo bizantino o dragão era retratado completamente com características de serpente, no Ocidente medieval ele assumiu diversas formas, que iam desde feições felinas ou caninas até avianas. Essa capacidade de mudança de forma do dragão medieval reforçou sua associação com o diabo.

Na arte românica dos séculos XI e XII, os dragões eram frequentemente representados como criaturas bípedes com asas, corpos robustos e rostos semelhantes a gatos ou cães. Eles possuíam pele escamosa, orelhas longas e caudas que terminavam em formas vegetais. Também havia dragões semelhantes ao grifo, uma criatura híbrida da antiguidade com cabeça, torso, pernas dianteiras e asas de águia, enquanto as patas traseiras eram de leão.

Dragões e Outras Criaturas na Arquitetura Religiosa

Os dragões românicos, tal como retratados nos capitéis, corbelhas e tímpanos das igrejas e mosteiros, geralmente estão tentando atacar cavaleiros, santos ou criaturas que simbolizam Cristo, como o cordeiro ou o leão. Além dos dragões, sereias, harpias, macacos e outras figuras consideradas “más” foram esculpidas na arquitetura das igrejas como forma de advertência. Quando os fiéis – muitos dos quais eram analfabetos – olhavam para esses bestiários de pedra aterrorizantes, eram lembrados dos castigos infernais e do que deveriam fazer para evitá-los.

Essas imagens se espalharam por toda a Europa, alcançando uma ampla audiência graças à crescente popularidade das peregrinações a Roma e Compostela, na Espanha. Esses locais atraíam um grande número de viajantes, que circulavam com seus objetos religiosos pelo continente, ajudando a difundir essas representações.

Bestiários Iluminados e a Simbologia Cristã dos Animais

Os bestiários iluminados, ou “livros de bestas”, tornaram-se particularmente populares na Europa cristã entre os séculos XII e XIII. Esses bestiários não apresentavam os animais com foco em sua história natural, mas sim como alegorias cristãs. Por exemplo, o canto sedutor de um pássaro simbolizava os perigos do desejo, enquanto a crença medieval de que um castor se castrava representava a castidade.

Além dos animais reais, os bestiários também traziam criaturas fantásticas, sendo os dragões um destaque. Um conjunto de convenções cresceu em torno dessas criaturas mitológicas. As caudas dos dragões eram consideradas mais mortais que seus dentes e eram usadas para sufocar grandes animais, como elefantes. Apesar de sua ferocidade e da associação com o diabo, acreditava-se que os dragões temiam a sombra da árvore peridexion, originária da Índia. Pombas, representando almas puras, estariam seguras dos dragões nos galhos dessa árvore, uma cena que simbolizava a salvação cristã.

O Dragão na Arte Gótica

A partir do século XIII, com o desenvolvimento da arte gótica, o design dos dragões se tornou mais complexo. A redescoberta dos escritos de Aristóteles sobre a natureza e o estudo de tratados árabes sobre óptica incentivaram uma abordagem mais empírica na representação da natureza.

Os dragões desse período passaram a se assemelhar mais aos animais reais, como répteis, anfíbios ou aves de rapina. Na época, a anatomia começou a ser estudada com mais cuidado, e, como observou o historiador de arte do século XX, Jurgis Baltrušaitis, os dragões góticos frequentemente eram representados com asas membranosas, semelhantes às de morcegos ou mariposas, além de cristas, espinhos e caudas ágeis. Havia cada vez mais representações de dragões quadrúpedes, inspirados em lagartos e crocodilos reais. No fim da Idade Média, o rosto monstruoso do dragão gótico começou a ser usado como representação do próprio diabo.

Dragões nas Lendas e Vidas de Santos

Os dragões desempenharam um papel importante em várias lendas e hagiografias (biografias de santos) que se tornaram muito populares na Idade Média. Nessas histórias, os santos conquistavam a redenção destruindo dragões ou criaturas serpenteantes. Por exemplo:

  • São Patrício expulsou todas as cobras da Irlanda.
  • São Hilarion lançou um dragão nas chamas que ameaçavam a Dalmácia.
  • São Marcelo, bispo de Paris entre os séculos IV e V, enfrentou heroicamente um dragão que guardava o túmulo de uma mulher pagã e ameaçava a paz dos moradores. Confiando na proteção divina, Marcelo se aproximou da criatura, tocou sua cabeça com o cajado e ordenou que ela desaparecesse da cidade.

A Lenda Dourada e as Histórias de Santos

Muitas dessas histórias se tornaram amplamente populares graças à circulação da Lenda Dourada, uma coleção de relatos sobre a vida de santos, compilada por volta de 1265 por Jacobus de Voragine, um pregador e bispo de Gênova. Um dos contos incluídos nessa obra é o de Santa Margarida (ou Santa Marina) de Antioquia.

Em Antioquia, cidade do Império Romano do Oriente, Olibrio, governador na época do imperador Diocleciano, pediu à jovem cristã Margarida que renunciasse à sua fé para se casar com ele. Quando ela recusou, ele ordenou sua prisão. Timóteo (ou Teótimo), um cativo que compartilhava a cela com Margarida, testemunhou a revelação que a jovem teve ao enfrentar um dragão. Ele descreve: “Depois de terminar sua oração, houve um grande tremor […]. Um enorme e aterrorizante dragão de pele multicolorida emergiu de um canto. Sua crista e barba eram como ouro. Seus dentes brilhavam e seus olhos pareciam pérolas. Fogo e fumaça saíam de suas narinas. Sua língua era como uma espada. Cobras estavam enroladas ao redor de seu pescoço.”

Essa criatura aterrorizante engoliu Margarida, mas com a ajuda de um crucifixo, ela abriu o estômago da besta e saiu ilesa.

Dragões nos Manuscritos Medievais

Por volta dos séculos XII e XIII, os manuscritos estavam repletos de dragões. Os escribas se destacavam ao inserir essas criaturas fabulosas nas elaboradas letras capitulares que abriam cada seção dos textos. Era comum ver dragões segurando as letras, caminhando dentro delas ou pendurados por suas caudas ou longos pescoços. Suas línguas, muitas vezes, eram usadas para destacar palavras no início dos parágrafos. As margens dos manuscritos também eram povoadas por dragões, frequentemente retratados lutando contra cavaleiros ou outras criaturas estranhas. Essas estratégias de design capturavam a atenção dos leitores, tornando o processo de leitura mais dinâmico e atraente.

O Dragão nas Florestas Medievais

Muitas histórias medievais situavam o dragão em ambientes hostis, como florestas. De acordo com a Lenda Dourada, Marta de Betânia, seguidora de Jesus Cristo, se estabeleceu em Provence, no sul da França. Nas florestas do Ródano, havia um dragão que os moradores chamavam de Tarasca, em referência à cidade de Tarascon, uma área conhecida por seu lago negro e densas florestas. O terrível dragão ameaçava todos que cruzavam as florestas às margens do rio. Santa Marta “derramou água benta sobre ele, brandindo uma cruz,” e o monstro, “obediente como uma ovelha, foi imediatamente morto pelas pessoas com lanças e pedras.”

Santos e Cavaleiros em Batalha com Dragões

A violenta derrota de dragões se tornou um tema favorito na cultura medieval, especialmente em histórias com heróis épicos e cavaleiros. O Beowulf, um poema épico anglo-saxão que data de entre o século VIII e XII, apresenta um dragão que guardava um valioso tesouro. Quando um ladrão rouba uma taça, o dragão ataca a população local, o que leva o herói Beowulf a confrontar e matar o monstro.

Nos romances de cavalaria, os cavaleiros enfrentavam dragões que guardavam locais, como o Vale Sem Retorno, na lenda arturiana. Nesse caso, foi Sir Lancelot quem derrotou o dragão que estava de guarda.

São Jorge e a Lenda do Dragão

A história de dragão mais famosa do mundo medieval foi a de São Jorge, um oficial do exército romano da Capadócia (na atual Turquia) que se converteu ao Cristianismo. George soube que o rei de Silene, uma cidade na Líbia, precisava saciar o apetite de um dragão oferecendo habitantes da cidade como alimento. Quando chegou a vez da própria filha do rei ser sacrificada, Jorge confrontou o monstro.

Após ferir o dragão com sua lança, Jorge pediu que a princesa o guiasse até a cidade. Lá, ele fez um juramento: mataria o dragão se os habitantes se convertessem ao Cristianismo. Eles aceitaram, e Jorge então decapitou o dragão. Mais tarde, São Jorge seria martirizado por sua fé durante a Grande Perseguição, em 303 d.C.

São Jorge e o Dragão

A obra de Vittore Carpaccio é uma das versões mais marcantes da história de São Jorge, o soldado que mata um dragão para resgatar a filha do rei de Silene, na Líbia, que estava prestes a ser sacrificada ao monstro. O artista renascentista veneziano pintou a obra entre 1502 e 1508, como parte de um ciclo para a Escola de San Giorgio degli Schiavoni, em Veneza.

Carpaccio representou a cena de batalha como um duelo medieval: o santo equestre, vestido com uma armadura metálica, perfura o crânio do dragão com sua lança, enquanto a princesa (à direita) observa a cena. A cidade de Silene é visível ao fundo. O dragão é mostrado com asas semelhantes às de morcegos, um corpo felino (ou semelhante ao de um grifo), e escamas de serpente. Essa era uma representação típica das criaturas imaginárias inventadas pelos artistas no final da Idade Média e no Renascimento.

Embora essas criaturas pareçam fantasiosas, elas eram, na verdade, inspiradas em animais reais que chegavam à Europa na época vindos de terras orientais. Com o aumento do comércio, leões, leopardos e crocodilos, vivos ou empalhados, começaram a fazer parte das coleções reais e aristocráticas. Essas coleções, conhecidas inicialmente pelo termo alemão wunderkammern (câmaras de maravilhas) e mais tarde em inglês como cabinets of curiosity, inspiraram as representações artísticas de animais fictícios. Na pintura de Carpaccio, outros répteis podem ser vistos no campo de batalha, cercados pelos restos das vítimas anteriores do dragão, com corpos mutilados, crânios e ossos espalhados pelo chão.

São Jorge e o Arcanjo Miguel na Arte Medieval

Na arte do final da Idade Média, tanto São Jorge quanto o arcanjo Miguel eram tipicamente retratados usando armaduras militares contemporâneas, como se fossem cavaleiros feudais. O santo guerreiro personificava os ideais de valor militar e altruísmo, centrais para a cavalaria medieval. Não é surpresa que as histórias de São Jorge e do arcanjo Miguel fossem tão populares na época.

O dragão, por outro lado, representava tudo o que era caótico, desordenado, pecaminoso e até demoníaco, algo que precisava ser controlado e eliminado. Embora em certo sentido fosse um animal, era um monstro: estranho, anômalo e mágico. Esse aspecto fantástico, mais do que o demoníaco, foi o que prevaleceu com o passar dos séculos, levando os dragões a alçar voo na cultura popular dos dias de hoje.

Este artigo foi desenvolvido com base no conteúdo do site: https://www.nationalgeographic.com/history/article/dragons-monsters-middle-ages

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