Também conhecida como “bouda”, suas histórias assustadoras podem ser usadas para marginalizar e desumanizar.
Um Cenário Assombrado em Atuga, Etiópia
Na pequena vila de Atuga, na Etiópia, em qualquer noite no final de outubro, os agricultores locais garantem que retornem para casa bem antes do pôr do sol. Os mercados fecham e as mães chamam suas crianças de volta das brincadeiras com uma nota de urgência em suas vozes.
“Você estava brincando perto da casa do ferreiro?” uma mãe pode perguntar enquanto apressa seus filhos para dentro de casa. “Você sabe que não deve se aproximar de lá.” As crianças, cientes do perigo, acenam com a cabeça.
Apesar de Atuga estar a cerca de 4 quilômetros da cidade mais próxima, parece um mundo à parte. Não é apenas silenciosa após o anoitecer: com menos de 200 moradores, a vila se funde à paisagem rural, mais como um acessório natural do que um centro urbano impositivo.
Sons da Noite e o Temor da Hiena Lobisomem
Dentro de suas casas, os moradores escutam os sons típicos das terras altas da África Oriental: o zumbido constante dos insetos, os cantos dos pássaros noturnos e, de tempos em tempos, o grito agudo de uma hiena – quase semelhante à risada humana. Assustadas pelo som, as mães colocam suas crianças na cama com um aviso: a hiena lobisomem se transforma à noite e tem um gosto especial por crianças.
Segundo a lenda, hienas lobisomens assombram lugares como Atuga e outras regiões no Chifre da África, incluindo a Etiópia, Somália e Sudão. Crianças que se aventuram longe de casa após o anoitecer correm perigo. Estranhos que passam pela cidade são vistos com desconfiança. Aquele som que você jura ser uma voz humana chamando seu nome ao longe? Hiena lobisomem.
Transformações e Mistérios
Diferente de seus primos folclóricos, os lobisomens, as hienas lobisomens podem ter nascido como humanos ou ser hienas disfarçadas de pessoas. Além disso, enquanto os lobisomens são conhecidos por se transformarem apenas sob a lua cheia, as hienas lobisomens são capazes de mudar de forma à vontade, usando um bastão mágico ou uma pitada de cinzas. Às vezes, o simples cheiro de carne humana já é o suficiente para desencadear uma transformação.
A Relação Entre Humanos e Hienas: Uma História de Conflito
A relação adversarial entre hienas e humanos remonta aos primeiros povos que habitaram a África. De certo modo, a origem da lenda da hiena lobisomem faz todo sentido: hienas e humanos sempre estiveram em confronto, especialmente nas áreas rurais. Por milhares de anos, essas criaturas noturnas se aproximam das aldeias à noite, invadem cabanas, matam crianças e destroem rebanhos. Como explica Marcus Baynes-Rock, especialista em relações entre humanos e animais e pesquisador na Universidade de Notre Dame, “Atualmente, os humanos tendem a acreditar que estão no controle total do ambiente. Mas, nas áreas rurais da África, um ataque de hiena não é um acidente raro, mas uma triste realidade. Existe uma aceitação de que nós não somos os predadores máximos.”
O Surgimento da Lenda da Hiena Lobisomem
Assim, é compreensível que as hienas lobisomens tenham se tornado uma representação de todos os perigos que espreitam além dos limites das comunidades humanas. Assim como as hienas reais, essas criaturas míticas são solitárias, mas também podem caçar em grupo. Elas são fortes, têm um apetite insaciável e são conhecidas por atrair pessoas para fora da segurança de seus lares. As mães usavam o mito da hiena lobisomem para reforçar os riscos conhecidos, como sair à noite, além dos perigos desconhecidos.
No entanto, o folclore das hienas lobisomens dá uma guinada inesperada quando se trata de identificar o “outro” que essas criaturas passaram a simbolizar. As hienas, frequentemente vistas como necrófagas (uma percepção incorreta, já que grande parte de sua alimentação vem da caça), não eram apenas consideradas antagonistas, mas também covardes e repulsivas. Um antigo mito originário da Costa do Marfim, por exemplo, conta como a “Hiena” tentou convencer os outros animais a matar o primeiro homem e a primeira mulher. Felizmente, o “Cão” avisou nossos ancestrais e frustrou o plano da Hiena, salvando a humanidade.
Hienas Lobisomens e a Marginalização
De maneira semelhante, o mito da hiena lobisomem se baseia na ideia de que elas não são apenas uma ameaça, mas uma ameaça vil e degradante. Em algumas regiões, essa crença evoluiu como uma forma de isolar ainda mais populações marginalizadas. Na tradição etíope, por exemplo, as hienas lobisomens eram conhecidas como bouda, um termo associado ao mau-olhado. Na tradição do povo Amhara, essa ideia remonta ao momento da Criação. Segundo a lenda, Eva foi mãe de 30 filhos, e um dia, Deus pediu para vê-los. Desconfiada das intenções divinas, Eva escondeu 15 de seus filhos. Quando Deus descobriu a desobediência, ele amaldiçoou esses filhos, transformando-os em bouda como castigo.
O Papel dos Artesãos e Ferreiros
Com o tempo, o termo bouda tornou-se sinônimo de uma classe marginalizada, associada aos artesãos de menor prestígio, especialmente os ferreiros. Por um período, acreditava-se que todos os ferreiros na cultura etíope eram bouda, capazes de usar o poder do mau-olhado para se transformar em hienas lobisomens à vontade. Essa crença ainda é comum hoje, sendo amplamente difundida na Etiópia, e também presente em menor grau no Sudão, Tanzânia e Marrocos.
A Profissão de Ferreiro e a Conexão com os Judeus da Etiópia
A profissão de ferreiro era, tradicionalmente, dominada pelos judeus da Etiópia, uma pequena minoria cuja presença no país remonta à antiguidade. Conhecidos como “Beta Israel” e acreditados como descendentes da tribo de Dã, que fugiu da guerra civil no Reino de Israel entre Roboão, filho de Salomão, e Jeroboão, filho de Nebate, os judeus etíopes não tinham permissão para possuir terras ou frequentar a maioria das escolas. Isso os levou a profissões como a de ferreiro – um ofício herdado que não exigia educação formal.
A Segregação Ideológica e a Marginalização
Don Seeman, estudioso de religião e estudos judaicos na Universidade de Emory, sugere que rotular a população judaica da Etiópia como bouda foi uma forma de segregação ideológica. Ao associar os bouda com os artesãos, criava-se uma ligação mítica que impedia a mobilidade social que poderia ter existido em eras anteriores. Para desumanizá-los ainda mais, dizia-se que os judeus teriantropos (metamorfos) roubavam tumbas durante a noite em sua forma de hiena, profanando ossos e consumindo qualquer carne humana restante. Um cheiro persistente de carne em decomposição era, supostamente, a melhor forma de identificar a hiena lobisomem quando ela voltava à sua forma humana.
O Fim da Associação e a Diáspora
As ligações entre os judeus da Etiópia e as hienas lobisomens são, em grande parte, uma coisa do passado. A maioria dos judeus etíopes foi forçada a se converter ao cristianismo entre os séculos XIX e XX, ou emigrou para Israel em uma série de operações orquestradas pelo governo israelense na década de 1980.
Variantes do Mito em Outras Regiões da África
Em outras partes da África, a lenda da hiena lobisomem assume características ligeiramente diferentes. Na Somália, ela se transforma esfregando-se com um bastão mágico ao pôr do sol. A versão sudanesa é mais violenta, conhecida por atacar casais após o anoitecer. No Marrocos, acredita-se que todas as hienas lobisomens se transformam todas as noites após o pôr do sol, retornando à forma humana ao amanhecer.
O Medo do Outro e o Poder da Natureza
Esses mitos compartilham um tema comum: o medo do “outro” e a capacidade da natureza de perturbar a vida daqueles que não respeitam seu poder. A crença nas hienas lobisomens ainda é bastante disseminada hoje em dia nas áreas rurais do Chifre da África, particularmente em vilas como Atuga, onde a ameaça (e a promessa) da vida selvagem ainda governa o cotidiano.
Ainda hoje, as mães de Atuga colocam seus filhos para dormir com uma história sobre as hienas lobisomens – assegurando-lhes que, se seguirem os avisos, o riso monstruoso das hienas não será o último som que irão ouvir.
Este artigo foi desenvolvido com base no conteúdo do site: https://www.atlasobscura.com/articles/monster-mythology-werehyena
André Pimenta é um apaixonado por mitologia, folclore e histórias e estórias fantásticas. Contribuidor dedicado do Portal dos Mitos. Com uma abordagem detalhista, ele explora e compartilha os mistérios das lendas sobre seres e criaturas fantásticas do Brasil e do mundo.