Monstros sugadores de sangue refletem nossas ansiedades culturais — especialmente nos tempos atuais.
A Lenda do Vampiro e Conspirações Modernas
Você já ouviu dizer que a vacina contra a Covid-19 transforma as pessoas em monstros vampíricos e que a prova está no filme Eu Sou a Lenda (2007), estrelado por Will Smith? Essa teoria conspiratória surgiu e se espalhou tão rápido que a Reuters publicou uma checagem de fatos desmentindo a informação e esclarecendo a trama do filme. Um dos roteiristas também sentiu a necessidade de reforçar no Twitter que a obra é pura ficção.
Embora essa desinformação pareça um fenômeno típico das redes sociais, ela remete às origens de um dos monstros mais icônicos da história: os vampiros. Curiosamente, os primeiros vampiros não surgiram em livros ou filmes. Eles não eram aristocratas da Transilvânia nem adolescentes charmosos e misteriosos. Na verdade, essas criaturas têm raízes no folclore e, em sua essência, foram criadas como símbolos das epidemias — uma tentativa de explicar as doenças em tempos onde a ciência era limitada.
Vampiros e Epidemias: Uma História Ancestral
Relatos sobre vampiros remontam aos séculos XI e XII na Europa, quando surtos de doenças como tuberculose e raiva eram frequentemente atribuídos a essas criaturas. O historiador medieval William of Newburgh registrou o caso de uma cidade devastada por um monstro que, segundo as pessoas, trazia doenças e mortes com seu “hálito pestilento”.
A criatura saía de sua tumba à noite e espalhava o terror até ser desenterrada e esfaqueada por dois irmãos que haviam perdido o pai para a peste. O monstro foi descrito como uma espécie de sanguessuga, com sangue escorrendo de seu corpo, e, após sua derrota, a epidemia que assolava a população cessou.
Por mais improvável que isso soe hoje, é preciso considerar as condições precárias da época. Sem conhecimento sobre vírus e bactérias, as pessoas eram expostas aos doentes mesmo após a morte deles, o que facilitava a disseminação de doenças. A falta de explicação científica transformava o desconhecido em terreno fértil para o surgimento de crenças em monstros e forças sobrenaturais.
“Quando falta ciência para explicar fenômenos, as pessoas recorrem à magia e à religião,” explica Stanley Stepanic, professor da Universidade da Virgínia, especializado no estudo do mito de Drácula. “A ausência de conhecimento sobre as doenças abriu espaço para que o mito do vampiro surgisse.”
O Vampiro em Evolução: Da Criatura do Folclore ao Aristocrata Sombrio
Os primeiros vampiros tinham aparência mais próxima do que hoje conhecemos como zumbis: bocas sujas de sangue, estômagos inchados e um cheiro insuportável. Foi somente no século XIX, quando esses monstros entraram para a literatura fantástica, que começaram a se transformar nos sofisticados aristocratas com trajes elegantes.
Essa mesma época trouxe uma nova preocupação para a sociedade: o surgimento das vacinas. Com a aprovação das primeiras leis de vacinação obrigatória na Inglaterra, nasceu uma forte resistência popular, que usava a imagem do vampiro como metáfora para o medo da violação do corpo. As presas dos vampiros passaram a simbolizar instrumentos cirúrgicos, e panfletos alarmistas espalhavam o temor de que as vacinas poluiriam o corpo e causariam a degradação da humanidade.
A Vacinação e o Vampiro como Símbolo de Medo
Um exemplo desse medo irracional é o panfleto “O Vampiro da Vacinação”, de 1881, que alegava que as vacinas levariam à “degradação e extinção” e disseminariam uma “poluição universal”. A resistência não se limitava à fantasia: havia um temor real de que as vacinas pudessem perturbar o equilíbrio dos humores do corpo, como sangue e outros fluidos, que na época eram considerados essenciais para a saúde.
“A ideia de cortar e interferir no sangue era apavorante,” explica Nadja Durbach, historiadora e autora do livro Bodily Matters: The Anti-Vaccination Movement in England, 1853-1907. Segundo Durbach, o contexto da resistência às vacinas é uma parte fundamental para entender a obra Drácula. O medo de que a vacinação pudesse corromper o corpo alimentava a imagem do vampiro como algo terrível e invasivo.
Drácula e Seu Legado
Quando Bram Stoker publicou sua obra transformadora Drácula em 1897, ele não apenas se inspirou no folclore dos vampiros, mas também nas preocupações da época, como o movimento anti-vacinação. A história do nobre transilvano que deixa seu castelo em busca de sangue fresco na moderna Londres capturou as ansiedades de sua época e explorou novos significados para o mito do vampiro.
Além de dar a Drácula a habilidade de se transformar em um morcego, Stoker ampliou as camadas simbólicas da criatura. O vampiro deixou de ser apenas um símbolo de doença e se tornou uma metáfora para desejos reprimidos. Como Stephen King escreveu em Danse Macabre: “Stoker revitalizou a lenda do vampiro ao escrever um romance que transborda energia sexual.”
É importante lembrar que o Conde Drácula do livro não era o vilão sedutor que o cinema popularizou mais tarde. Com palmas das mãos peludas, narinas arqueadas e dentes afiados, ele se apresentava mais como uma criatura animalesca do que como um sedutor elegante. A primeira adaptação cinematográfica, Nosferatu (1922), é um exemplo claro dessa representação. Gravado logo após a pandemia de gripe espanhola, o filme alemão expressionista é assombrado por temas de doença e morte em massa. O vampiro do filme, com seus dentes de roedor e dedos alongados, parece uma personificação das pragas, já que até sai de seu caixão cercado por ratos, associados à peste bubônica.
A Evolução do Vampiro no Cinema
Uma década depois, Bela Lugosi mudou radicalmente a imagem do vampiro ao interpretá-lo como um aristocrata europeu sedutor no clássico Drácula (1931), da Universal. Sua voz e penteado se tornaram clichês do gênero, mas foi sua intensidade no olhar e carisma que realmente marcaram a versão moderna do personagem. Desde então, cada ator que interpretou um vampiro trouxe mais sensualidade para o papel, explorando não apenas nossos medos, mas também nossos desejos.
Os vampiros se tornaram ícones sedutores ao longo do século XX. Nos romances de Anne Rice, eles foram envoltos na estética gótica sulista, enquanto os filmes da Hammer Films, nas décadas de 1960 e 1970, exploraram um universo vitoriano mais sensual. A partir dos anos 1980, o gênero evoluiu, fundindo o vampiro charmoso com a comédia adolescente em produções como Os Garotos Perdidos. Isso abriu caminho para séries como Buffy, a Caça-Vampiros e para o fenômeno literário e cinematográfico Crepúsculo, onde os vampiros são apresentados como outsiders românticos e incompreendidos, lutando contra seus próprios instintos por amor.
Vampiros: De Monstros a Heróis Românticos
Os vampiros não eram mais apenas criaturas monstruosas; agora eram heróis apaixonados, enfrentando seus impulsos para proteger aqueles que amam. A série True Blood, da HBO, radicalizou essa transformação, tirando os vampiros do pedestal da literatura vitoriana e os colocando como uma classe oprimida no sul dos Estados Unidos, lutando por direitos iguais enquanto a trama explorava temas de desejo e identidade.
A tradição dos vampiros sensuais continua viva na cultura pop contemporânea. O filme Night Teeth, da Netflix, ambientado na vida noturna neon de Los Angeles, mostra uma quebra de pacto entre criaturas sobrenaturais, mas sua essência é oferecer uma narrativa estilosa e sangrenta. Além disso, o longa apresenta uma cena emblemática com Megan Fox e Sydney Sweeney, simbolizando a passagem da tocha entre gerações de ícones sexuais.
A Flexibilidade Metafórica do Vampiro
Embora o elemento sexual sempre tenha sido uma parte subentendida do mito do vampiro, essa criatura provou ser surpreendentemente versátil em termos metafóricos. Os vampiros evoluíram para refletir ansiedades sociais contemporâneas, servindo como um espelho para questões culturais urgentes.
O filme Black as Night, da Amazon, é um exemplo dessa evolução, conectando o mito dos vampiros ao movimento Black Lives Matter. A história gira em torno de uma jovem que enfrenta vampiros em Nova Orleans, explorando as consequências históricas da supremacia branca. Essa narrativa faz parte de uma nova onda de filmes de terror racialmente progressistas, inspirados por obras como Blacula (1972), que conta a história de um príncipe africano do século XVIII, escravizado pelo Conde Drácula durante uma missão diplomática para combater o tráfico de escravos.
O mito do vampiro, portanto, continua a se transformar, assumindo novos significados que dialogam com as questões sociais e culturais de cada época.
A Comédia e a Desmistificação do Vampiro
A hilariante série What We Do in the Shadows é esperta demais para deixar metáforas atrapalharem suas piadas. Na temporada atual, os vampiros desajeitados da trama acabam assumindo cargos de liderança no Conselho Vampírico, tornando-se uma sátira perfeita para nosso sistema político ineficaz. A essência da piada é zombar da história dos vampiros glamorosos. A série adota o formato de falso documentário popularizado por The Office para acompanhar a tediosa vida de vampiros em Staten Island, revelando uma verdade negligenciada sobre a imortalidade: ela pode ser extremamente monótona.
Esses vampiros enfrentam dilemas banais, jogam cornhole e sofrem com depressão. Um dos personagens mais engenhosos é Colin Robinson (Mark Proksch), um vampiro de energia que literalmente suga a vitalidade das pessoas entediando-as até a inconsciência com piadas ruins e explicações desnecessárias. A franquia Hotel Transilvânia também segue essa linha, desmistificando os monstros através da rotina familiar e mostrando que até vampiros precisam lidar com problemas domésticos.
Vampiros em Reboot: O Retorno dos Clássicos
A onda de produções sobre vampiros continua crescendo. Estão a caminho novos remakes de clássicos como Salem’s Lot, Entrevista com o Vampiro, baseado na obra de Anne Rice, e uma adaptação da delicada narrativa sueca Deixe Ela Entrar. Até Os Garotos Perdidos ganhará uma nova versão.
Além disso, vampiros estão invadindo o gênero de super-heróis. A Marvel está desenvolvendo um novo filme de Blade, com Mahershala Ali no papel principal, e Morbius, previsto para janeiro, onde Jared Leto interpreta um bioquímico que, ao tentar curar uma doença sanguínea, acaba infectando-se acidentalmente com vampirismo.
A Persistência do Vampiro nas Narrativas de Doenças
Por mais que os filmes de vampiros lidem com diferentes medos sociais e políticos, o tema da doença sempre retorna como um eixo central. Durante a epidemia de AIDS, nos anos 80 e 90, a ideia de um vírus transmitido por contato sexual ou infusão de sangue ganhou novos significados nas narrativas vampíricas, como no filme Drácula de Bram Stoker, dirigido por Francis Ford Coppola.
Um dos romances mais influentes depois de Drácula foi Eu Sou a Lenda (1954), de Richard Matheson, que inspirou teorias conspiratórias recentes sobre vacinas. A história se passa após uma pandemia que extermina a humanidade e transforma parte da população em vampiros, embora, no livro, a causa da mutação não seja uma vacina, mas uma tentativa de cura para o câncer que deu errado.
Do Vampiro ao Zumbi: A Linha Tênue entre Monstros
Eu Sou a Lenda não apenas introduziu o horror apocalíptico moderno, com hordas de monstros furiosos, mas também inspirou o diretor George Romero a criar A Noite dos Mortos-Vivos (1968). Romero deu início à tradição dos filmes de zumbis, que podem ser vistos como uma evolução — ou talvez um retorno — ao estilo original dos vampiros do folclore.
Além de doenças infecciosas, um tema recorrente em filmes de vampiros é o vício. Obras como Near Dark (1987), dirigida por Kathryn Bigelow, e Martin (1976), de George Romero, exploram a metáfora do vício em sangue. Esse tema continua relevante, aparecendo em novas produções disponíveis em plataformas de streaming.
Vampiros na Era da Covid: Medo e Adaptação
Com o advento da pandemia de Covid-19, o tema das epidemias ganhou ainda mais força nas histórias contemporâneas de vampiros. Assim como no passado, as narrativas de vampiros continuam refletindo ansiedades culturais, adaptando-se às preocupações de cada época. Enquanto esses monstros evoluem para dialogar com novos medos e realidades, o mito do vampiro permanece resiliente, renovando-se continuamente e provando que essas criaturas são uma metáfora poderosa — sempre prontas para nos mostrar o que mais tememos e desejamos.
Vampiros na Cultura Contemporânea: A Reflexão do Medo Coletivo
A série Midnight Mass é um retrato intrigante de uma infestação de vampiros em uma pequena ilha. A história gira em torno de um misterioso forasteiro, interpretado por Hamish Linklater, que assume o posto de padre em uma igreja quase esquecida. Suas missas carismáticas rapidamente atraem multidões, mas eventos cada vez mais estranhos e sangrentos começam a acontecer ao seu redor. A violência na série é chocante desde o início, quando centenas de gatos mortos são encontrados na praia, inicialmente atribuídos a uma doença.
A temporada atual de American Horror Story também explora temas semelhantes, começando com animais mortos e focando em um roteirista cuja carreira decola após ele começar a beber sangue. O primeiro sinal de que algo está terrivelmente errado vem da personagem Tuberculosis Karen, interpretada por Sarah Paulson. Karen é uma figura pálida e perturbada cuja tosse incessante pode evocar temores da Covid-19, enquanto seu apelido remete à tuberculose, uma doença que tem ligação histórica com o surgimento do mito do vampiro.
A Pandemia e a Transformação do Horror
Para assustar o público, o horror precisa se adaptar. Vampiros europeus com presas já não causam o mesmo impacto de antes, mas a ideia de contágio continua a ser uma fonte poderosa de medo. À medida que nossas ansiedades se orientam cada vez mais em torno de pandemias, surge a pergunta: qual será o futuro dos vampiros na ficção?
Joe Dante, um veterano do cinema de terror, sugere que atualmente temos mais razões para ter medo — tanto no campo político quanto no médico — do que em qualquer outro momento recente. Segundo ele, isso pode dificultar um retorno às abordagens puramente sobrenaturais.
Por outro lado, Larry Fessenden, que estrelou e dirigiu o elogiado filme indie Habit nos anos 1990, enxerga novas oportunidades para o gênero de terror. Em um e-mail, ele explicou: “A pandemia intensificou nosso medo uns dos outros, do contágio e da infecção, com gotas invisíveis capazes de causar um impacto devastador em nossos corpos. Isso gerou uma atmosfera de profunda desconfiança e isolamento. E, claro, sempre haverá aqueles que se recusam a acreditar que o monstro realmente existe.”
O Futuro do Mito do Vampiro
Fessenden acredita que veremos uma nova onda de histórias de vampiros que exploram a obsessão claustrofóbica com a morte e a paranoia. Essas narrativas podem refletir a crescente sensação de isolamento e desconfiança que permeia a sociedade atual. Assim, o mito do vampiro continua a se reinventar, acompanhando nossas ansiedades e evoluindo para dialogar com os medos contemporâneos.
Enquanto o medo de contágio e infecção domina nosso imaginário, o vampiro permanece como uma metáfora maleável e poderosa. Seja como uma criatura mística ou uma representação simbólica das crises do momento, ele nunca desaparece por completo. Ao invés disso, adapta-se às mudanças culturais e sociais, provando que, assim como o sangue de suas vítimas, o mito do vampiro continua a fluir em nossa imaginação coletiva.
Este artigo foi desenvolvido com base no conteúdo do site: https://www.nytimes.com/2021/10/30/style/vampires-coronavirus.html
André Pimenta é um apaixonado por mitologia, folclore e histórias e estórias fantásticas. Contribuidor dedicado do Portal dos Mitos. Com uma abordagem detalhista, ele explora e compartilha os mistérios das lendas sobre seres e criaturas fantásticas do Brasil e do mundo.