Godzilla: Explorando as Raízes Mitológicas do Icônico Kaiju

O cinema ocidental, especialmente na Europa e nos Estados Unidos, está repleto de histórias que envolvem jornadas perigosas ou sacrifícios heróicos para salvar o mundo. Essa narrativa é profundamente influenciada por tradições culturais como o cristianismo e os clássicos gregos. No Japão, embora essas influências sejam menos evidentes, sua mitologia e folclore têm um impacto igualmente significativo no entretenimento local.

Um exemplo perfeito disso é Godzilla. Apesar de o kaiju ter sido inspirado visualmente no rhedossauro do filme O Monstro do Mar Revolto (The Beast from 20,000 Fathoms, de 1953), há muito mais do que parece à primeira vista. O monstro lendário compartilha semelhanças impressionantes com alguns dos mitos mais conhecidos do Japão.

O Destruidor de Cidades e o Deus Irado do Japão

Susanoo, uma figura central na mitologia japonesa, é um personagem com muitas camadas. No Kojiki — o texto mais antigo que narra os mitos e a linhagem imperial japonesa —, o tradutor Gustav Heldt interpretou o nome de Susanoo como “Homem Furioso e Impetuoso”. Uma descrição bastante apropriada.

Irmão da deusa do sol, Amaterasu, Susanoo é frequentemente associado ao mar e às tempestades. Sua personalidade é marcada por ações impulsivas e destrutivas, muitas vezes causadoras de caos. Ele destruiu campos de arroz de sua irmã, profanou seu palácio e, em uma das histórias mais famosas, jogou um cavalo esfolado em sua sala de tear. Esse último ato de fúria fez com que Amaterasu se retirasse para a Caverna Celestial, mergulhando o mundo na escuridão.

No entanto, Susanoo não é apenas um agente do caos. Após ser banido para a Terra, ele protagonizou um momento heróico ao derrotar Yamata no Orochi, o dragão de oito cabeças que aterrorizava a região.

Paralelos entre Godzilla e Susanoo

Assim como Susanoo, Godzilla também começou sua jornada como um símbolo de destruição e raiva. No filme original de 1954, o kaiju devastava Tóquio com fogo nuclear e caos, mostrando uma força imparável que representava tanto medo quanto poder. Se Godzilla tivesse mãos mais ágeis, certamente poderia ter esfolado um cavalo em sua fúria destrutiva!

Com o passar do tempo, contudo, Godzilla passou por uma transformação semelhante à de Susanoo. A partir do filme Ghidorah, o Monstro de Três Cabeças (1964), ele começou a ser retratado como um herói, um defensor da humanidade. E curiosamente, esse arco de redenção envolve o enfrentamento de um dragão multi-cabeças, um paralelo evidente ao feito de Susanoo contra Yamata no Orochi. Felizmente, as cenas mais grotescas de Susanoo não encontraram espaço nas telas de cinema para o kaiju.

O Rei dos Monstros e o Rei do Mar

O Japão possui uma rica tradição de mitos ligados a dragões aquáticos, a ponto de existir um ramo inteiro de crenças xintoístas e populares dedicado à veneração dessas majestosas criaturas. Entre essas divindades, Ryujin, o rei de toda a vida marinha, se destaca como uma das mais poderosas. Assim como Susanoo, Ryujin tem o poder de controlar tempestades e castigar aqueles que o desafiam.

No entanto, enquanto Susanoo utilizava métodos peculiares para expressar sua ira, como cavalos esfolados, Ryujin recorria a um elemento bem diferente: o fogo. Apesar de dragões asiáticos geralmente não serem associados a chamas, Ryujin é uma exceção, sendo ocasionalmente vinculado a esse elemento. Esse aspecto é celebrado no Festival do Fogo de Ryujin, realizado em Gero, na província de Gifu. Durante o evento, enormes marionetes de Ryujin são construídas para cuspir chamas pirotécnicas, em uma impressionante homenagem ao deus do mar.

Essa conexão entre um dragão às vezes benevolente, às vezes vingativo, e o fogo não é difícil de relacionar com Godzilla. O “rei dos monstros” é famoso por sua arma característica: um sopro de fogo devastador. Embora não haja evidências concretas de que os criadores de Godzilla se inspiraram diretamente em Ryujin, algumas semelhanças são intrigantes. Por exemplo, Ryujin também é descrito como um “dragão semelhante a uma baleia”. Isso é curioso, considerando que o nome “Gojira” é uma fusão das palavras japonesas gorira (gorila) e kujira (baleia).

Essa ligação sutil, mas significativa, mostra como elementos da mitologia japonesa podem ter influenciado, mesmo que indiretamente, a construção de um dos maiores ícones culturais do país.

O Titã Entre os Titãs Mitológicos do Japão

O Japão não é estranho à ideia de monstros gigantes. Sua mitologia está repleta de criaturas colossais, muitas vezes ligadas ao sobrenatural. Um exemplo curioso é Kerakera Onna, uma mulher gigantesca e extravagante que aparece em distritos da luz vermelha, rindo das prostitutas e de seus clientes. Sua história reflete o pesar da vida que levou antes de morrer, mas, felizmente, não há muito em comum entre ela e Godzilla.

Por outro lado, as raízes de Godzilla podem ter uma ligação mais próxima com criaturas como Gashadokuro, um esqueleto gigante formado pelos ossos de guerreiros e soldados que morreram sem sepultamento adequado. Uma espécie de Voltron alimentado por rancores de além-túmulo. Outra possível influência é o Bakekujira, uma aparição fantasmagórica de esqueletos ou carcaças de baleias que trazem calamidade para aqueles que os avistam. Essa estética sombria pode ter contribuído para o visual aterrorizante do Shin Godzilla.

Há também paralelos interessantes entre Godzilla e o Daidarabotchi. Embora esta última figura mitológica se pareça com um humano careca, seu tamanho colossal está intimamente ligado a montanhas e à natureza. Essa conexão com a força natural se alinha à representação de Godzilla como um símbolo de uma Mãe Terra furiosa, punindo a humanidade pelo uso de armas nucleares.

Outra possível inspiração é o Umi Bozu, uma criatura misteriosa que emerge do oceano para atacar navios. Diz-se que ele é nascido da fúria das vítimas de afogamento. Com seu tamanho imenso, tendência a surgir dramaticamente do mar e ligação com a ira, o Umi Bozu compartilha várias características com o “rei dos monstros”.

Cultura Gera Cultura: O Legado Mitológico de Godzilla

Ao observar todas essas conexões, parece que uma variedade de kami e criaturas sobrenaturais japonesas se combinam metaforicamente para formar a essência de Godzilla. Embora algumas semelhanças possam ser coincidência, a explicação mais plausível é que a cultura inspira cultura. Nenhuma criação surge do nada; elas carregam em si ecos de histórias milenares que as precederam.

E essa perspectiva faz de Godzilla uma figura ainda mais fascinante. Ele não é apenas um monstro icônico, mas também um reflexo de uma rica tapeçaria cultural, onde mitos e lendas se encontram para criar algo novo. Portanto, ao reverenciar Godzilla, também estamos celebrando séculos de narrativas que continuam a moldar nosso entendimento do fantástico.

Este artigo foi desenvolvido com base no conteúdo do site: https://www.tokyoweekender.com/art_and_culture/japanese-culture/godzilla-exploring-the-mythological-roots-of-the-iconic-kaiju/

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