Para os Maias K’iche’, os animais não eram seres inferiores, mas vizinhos, alter egos e uma maneira de se comunicar com os deuses.
A Presença dos Animais no Popol Vuh
No Popol Vuh, os animais estão em toda parte. Eles saltam, lambem, rastejam, mordem, grasnam, gritam, urram e uivam. Eles são considerados sagrados, não como entidades distantes e incorpóreas, mas sim em sua convivência diária com os humanos nas florestas. A Serpente Soberana e o Quetzal, com sua bela plumagem azul-esverdeada, criaram o mundo a partir de um vasto e sereno oceano. O Popol Vuh nos conta essa narrativa da criação da humanidade, seguido pela mitologia, história e cultura do povo indígena Maia K’iche’, nas terras altas da Guatemala.
O Mundo Conectado: Animais, Humanos e Deuses
No universo do Popol Vuh, os mundos animal, humano e divino formam um todo contínuo, onde a comunicação e a transformação entre eles acontecem de maneira natural. Relacionamentos de amor, amizade, rivalidade e instinto ligam essas esferas. Diferentemente da visão europeia de domínio sobre os animais, para os Maias K’iche’, os animais não eram vistos como seres inferiores. Eles os viam como vizinhos, alter egos e, acima de tudo, uma forma de comunicação com o divino. Os humanos não os domesticavam nem os idealizavam, mas reconheciam sua forma de existência. Caçavam-nos, enviavam-nos em tarefas, captavam suas mensagens dos deuses, sacrificavam-nos e até brincavam com eles.
A Estrutura do Popol Vuh: Circular e Linear
A primeira metade do Popol Vuh tem uma estrutura circular e mitológica, conectada a uma visão mística do tempo e das estrelas. Já a segunda metade é mais histórica e linear, registrando eventos desde os reinados dos reis Maias até a chegada trágica dos colonizadores espanhóis. Baseado em tradições orais e performativas, o Popol Vuh reflete uma fascinante consciência sobre a relação mutável com os deuses e com os animais. Essa relação vai se transformando ao longo do tempo, com novas ideias de moralidade, existência sedentária e subserviência aos deuses que oferecem prazeres temporários, como alimentos e mulheres. A relação de controle sobre os animais se afasta dos arranjos mais fluidos do passado, antevendo o impacto da conquista espanhola.
A Origem do Popol Vuh e sua Escrita
Originalmente escrito em cascas de árvore ou em peles de veado, o Popol Vuh foi compilado pela nobreza na cidade de Santa Cruz del Quiché por volta de 1550, nos primeiros anos do colonialismo. A obra se apoia em narrativas perdidas que remontam a um passado pré-colombiano mais antigo. Hoje, é frequentemente chamado de “Bíblia Maia”, embora essa comparação não faça jus à singularidade de suas ideias sobre identidade e animalidade. Apesar de algumas semelhanças pontuais, o Popol Vuh diverge amplamente da tradição católica em suas concepções de existência e espiritualidade.
Animais como Mensageiros e Companheiros
Na primeira parte do Popol Vuh, os animais assumem o papel de mensageiros para deuses e homens, capazes de se comunicar tanto com os seres divinos quanto com os mortais e entre si. Eles atuam de forma colaborativa ou vingativa, ajudando a frustrar ou impulsionar planos em conjunto. Por exemplo, um exército de formigas auxilia os gêmeos Hunahpú e Xbalanqué, heróis do Popol Vuh, a conduzir seus inimigos de um desfiladeiro para a estrada. Os animais não são mágicos, mas são práticos e astutos. Macacos bugios, jaguares, cobras cascavéis, tamanduás, morcegos, piolhos, sapos, cobras, falcões, corujas, javalis, tartarugas, coelhos, pombas, mosquitos, formigas vermelhas e pretas, entre outras espécies – são mais de 30 – aparecem e, muitas vezes, roubam a cena.
A Criação dos Humanos e a Importância dos Animais
Imagine uma linha de formigas correndo, um brilho de pelagem no escuro ou uma borboleta com padrões turquesa batendo as asas. Essas criaturas são belas, efêmeras e essenciais. Na visão do Popol Vuh, os humanos são criados graças aos animais. Hunahpú e Xbalanqué nascem porque corujas ajudam sua mãe a enganar os senhores de Xibalba. Antes disso, os deuses tentam criar os primeiros seres a partir de barro e madeira, mas falham. Por fim, os gatos-do-mato, coiotes, pequenos papagaios e corvos trazem o milho, que é usado pelos deuses para fazer a massa de maiz que forma os humanos, garantindo a nutrição necessária para a força. O milho, nessa cultura, é a base de tudo.
Violência e Interação na Natureza
Os animais no Popol Vuh também agem de forma violenta, de maneira aparentemente amoral e, para os olhos modernos, muitas vezes sem necessidade, como um gato que brinca com um rato antes de matá-lo. Os humanos, por sua vez, também interagem com a natureza e com os deuses de maneira despreocupada e provocativa, como meninos em um intervalo de futebol. Ao invés de um deus distante reinando sobre pessoas obedientes, o Popol Vuh retrata uma relação fragmentada e antagonista entre homens e deuses, com os animais sempre presentes e conscientes, participando ativamente dos acontecimentos. Eles não estão simplesmente no pano de fundo; são essenciais para dar vida ao pulsante e vibrante mundo do Popol Vuh.
A Força Vital e Animística dos Animais
Para os Maias, os animais possuem uma força animística e vital que os torna parte essencial de seu universo. Cães, por exemplo, são venerados, mas também caçados como esporte, e às vezes até ressuscitados, sem que eles tenham qualquer escolha. As feições dos macacos são motivo de riso, enquanto outras criaturas são mortas, assadas, cobertas de giz branco, oferecidas como presentes falsos ou deformadas fisicamente por humanos e deuses. Essas histórias de origem explicam suas formas atuais – como o rabo do rato queimado pelo fogo, que o tornou sem pelos, ou o bico da coruja, que foi rachado como punição. Animais são facilmente apaziguados com ossos e comida, sendo frequentemente enganados, mortos e manipulados para ajudar em tarefas humanas. Cabeças de pumas ou jaguares são usadas em jogos de bola, vaga-lumes iluminam charutos, e insetos e corujas servem como mensageiros, numa espécie de serviço postal gratuito.
A Passividade dos Animais e a Aceitação do Destino
Mas o que explica essa aparente passividade? Por que os animais aceitam servir a outros? Por que não se revoltam de forma organizada? Os animais no Popol Vuh demonstram que podem se unir e se comunicar entre espécies. Na visão Maia, no entanto, o corpo físico é tratado com uma certa indiferença, pois é o espírito que perdura, enquanto a transitoriedade do corpo é aceita como parte da vida. Assim, tanto na terra quanto em Xibalba – o submundo ou o local da morte, onde habitam os deuses, dividido em seis casas: Casa das Trevas, Casa dos Ossos, Casa do Jaguar, Casa do Morcego, Casa das Navalhas e Casa do Calor – os animais frequentemente encontram seu fim.
A Interligação entre Humanos, Deuses e Animais
Dentro da complexa mitologia Maia, os animais mantêm um papel sagrado e indispensável no mundo, carregando elementos tanto humanos quanto divinos. Não há separação rígida entre os três grupos, e existe uma constante movimentação entre os corpos físicos, similar a sistemas de pensamento como o hinduísmo, onde a alma assume diferentes formas físicas. Quando os heróis gêmeos morrem em Xibalba, enfrentando os senhores da morte na quadra de jogo, suas cinzas são lançadas em um rio, e eles renascem como híbridos de pessoas e peixes. Os Maias reconhecem a força vital e animística dos animais que os cercam, que flui e se manifesta sem estar limitada a um único corpo físico.
A Transformação da Relação Humana com os Animais
Ao longo do Popol Vuh, a relação dos humanos com os animais muda à medida que a humanidade também passa por transformações. Uma grande inundação ocorre, e, da primeira para a segunda parte do manuscrito, os humanos perdem a conexão com a vida não humana, incluindo animais, plantas e o divino. Os deuses começam a se sentir ameaçados pelos novos humanos e retiram algumas de suas habilidades.
“Então, o Coração do Céu soprou névoa em seus olhos, que nublou sua visão como quando um espelho é embaçado. Seus olhos foram cobertos, e eles só podiam ver o que estava próximo, apenas isso lhes era claro. Dessa forma, a sabedoria e todo o conhecimento dos quatro homens, a origem e o começo, foram destruídos.”
Ignorantes, os humanos perdem a valorização da convivência e se dividem. De uma origem comum, surgem diferentes línguas e deuses. Eles passam fome, se alimentam de casca de árvores e cheiram as pontas de seus cajados para enganar o estômago. Migram, e apenas alguns possuem fogo; os outros, sem fogo, tremem de frio. Finalmente, graças a oferendas de incenso, o sol surge, trazendo alegria não só para os humanos, mas para todos os animais, que também deviam estar sofrendo com o frio. Os pumas e jaguares rugem, as águias e urubus cantam e abrem suas asas. No entanto, o sol é agora severo demais; seca tudo e transforma os animais mais ferozes em pedra.
A Nova Percepção dos Animais e a Imitação dos Humanos
As “novas gerações de homens” que sobrevivem começam a adorar os deuses distantes no céu. Nesse processo, algo peculiar acontece. Os humanos ganham almas, mas também se tornam mais “animalescos”, coordenando-se em grupos, sem questionar sua condição. Trabalham em prol da tribo sem refletir, enquanto os animais não humanos começam a desaparecer do cenário.
Agora, os novos humanos veem os animais como rivais a serem consumidos ou como modelos a serem imitados para obterem seus poderes. Os animais deixam de ser intermediários e passam a representar algo a ser copiado, uma força a ser canalizada. As insígnias da realeza dos novos reis humanos, bem como dos deuses, têm elementos animais: garras de pumas e jaguares, cabeças e patas de veados, conchas de caracol e muitas penas – de papagaios, garças, araras vermelhas e azuis, cotingas e quetzais. Os reis adotam nomes de animais, e alguns deles possuem o poder de metamorfosear-se em outras criaturas. O rei Gucumatz, por exemplo, é capaz de se transformar em águia, jaguar e até em sangue coagulado. Os humanos de posição mais baixa vestem peles de veado e comem qualquer animal que encontram.
Sacrifícios e a Transformação da Cultura Maia
A partir dessa nova percepção, começam os sacrifícios, tanto de animais quanto de humanos. Os deuses perseguem mulheres humanas e exigem oferendas. Primeiro, aceitam criaturas das florestas e campos, como veados fêmeas e pássaros, mas logo querem mais. Sacerdotes perfuram sua própria carne com espinhos de arraia para oferecer sangue humano, mas os deuses continuam famintos. Balam-Quitzé, Balam-Acab, Mahucutah e Iqui-Balam, os primeiros homens de milho, passam a raptar homens e exterminar tribos inteiras em nome do sacrifício. Os deuses se disfarçam de coiotes, gatos-do-mato, pumas e jaguares, imitando seus sons para enganar os humanos. Os homens reagem, confeccionando capas bordadas com desenhos de animais. Muito sangue é derramado, e as últimas páginas do Popol Vuh são uma melancólica recitação de linhagens, nomes de reis e grandes casas.
A Chegada dos Espanhóis e o Legado do Popol Vuh
É então que os espanhóis chegam, enforcando os reis e transformando edifícios em ruínas, agora habitados por corujas e gatos selvagens. O Popol Vuh é o relato compilado por autores anônimos K’iche’ algumas décadas depois.
“Aqui nós escreveremos. Começaremos a contar as histórias antigas do começo, a origem de tudo o que foi feito na cidadela dos K’iche’, entre o povo da nação K’iche’. Aqui reuniremos a manifestação, a declaração, o relato da semeadura e do alvorecer pelo Moldador e o Modelador, Ela Que Deu à Luz e Ele Que Gerou Filhos, como são chamados; junto com Hunahpu Gambá e Hunahpu Coiote, Grande Queixada Branca e Quati, Soberano e Serpente Quetzal, Coração do Lago e Coração do Mar, Criador da Terra Verde e Criador do Céu Azul, como são chamados.”
O interesse dos Maias por seu próprio passado precede a chegada dos colonizadores espanhóis, e o Popol Vuh surge em um momento de crise dupla, marcado pela violência, destruição e morte cultural trazidas pelos espanhóis. É difícil mapear esses eventos em um calendário romano, dada a complexa contagem de tempo cíclica dos Maias, seus sistemas astronômicos, almanaques sagrados e tentativas de expressar a história de forma pictórica e hieroglífica. No entanto, o próprio Popol Vuh documenta uma mudança na relação com os animais, o mundo natural e os deuses, deixando aberta a possibilidade de que esses eventos possam indicar um retorno ou uma transformação futura.
O Resgate do Popol Vuh e a Tradução de Ximénez
Cerca de um século e meio após a invasão espanhola na Guatemala, em 1701, o padre dominicano Francisco Ximénez encontrou o relato K’iche’-Maia na cidade de Chichicastenango, onde o manuscrito havia sido levado. Ele começou a traduzi-lo para o espanhol como parte de um projeto para evangelizar os nativos, alinhado ao lema da Ordem Dominicana: “contemplare et contemplata aliis tradere” (estudar e compartilhar os frutos de seus estudos). Inicialmente, Ximénez não deu um título à tradução; apenas a incluiu em seu grande volume Historia de la provincia de San Vicente de Chiapa y Guatemala. No século XIX, o explorador austríaco Karl von Scherzer encontrou o texto e o copiou, enquanto o escritor francês Charles-Étienne Brasseur de Bourbourg o retirou da biblioteca da Universidade de San Carlos, na Guatemala, em um período de instabilidade no país, quando os manuscritos estavam jogados no chão de uma sala escura e úmida. Sua tradução foi a primeira a utilizar o título atraente “Popol Vuh”. Eventualmente, a cópia roubada chegou à Biblioteca Newberry em Chicago. Essas várias camadas de tradução e recepção também fazem parte da história do Popol Vuh.
O Colonialismo Espanhol e a Destruição Cultural
O projeto colonial espanhol, fortemente identificado com a Igreja Católica, trouxe atos de grande destruição contra os povos indígenas. Em Yucatán, também habitado por povos maias, o frade franciscano Diego de Landa, no século XVI, ganhou a confiança dos indígenas apenas para, mais tarde, queimar um grande número de seus livros escritos em hieróglifos.
Ximénez chegou à Mesoamérica um século e meio após Landa. Como dominicano, ele acreditava que a razão era um dom concedido por Deus, vinculado à cultura intelectual e aos métodos brandos de persuasão, em vez da violência física. Para Ximénez, a tarefa do sacerdote era ajudar a desenvolver e encorajar o uso da razão nos indígenas, que ele via como menos desenvolvidos nesse aspecto em comparação aos católicos, mas ainda assim não os considerava bárbaros sem inteligência.
O Corpo e a Comunidade: Valores Maiores para os Maias
Para os Maias, a “razão” nunca foi o valor central. O corpo e a comunidade eram considerados mais importantes e estavam profundamente ligados à noção de alma. Com essa premissa, o trabalho de Ximénez para aprender a língua K’iche’, traduzir o Popol Vuh e interpretá-lo salvou uma obra sagrada maia do esquecimento. Embora acreditasse que os indígenas deveriam ser convertidos devido à influência do “pai das mentiras”, ou Satanás, ele levou a religião maia a sério, comparando-a em seu prólogo a heresias europeias, como as de Ário, Lutero, Calvino e Maomé, adversários formidáveis e intensamente debatidos entre os dominicanos. Ximénez estava disposto a considerar a razão de seus oponentes, em vez de destruir suas obras, como fez Landa.
A Irônica Valorização dos Animais
É uma irônica e gloriosa coincidência que Ximénez tenha resgatado uma obra que concede tanta agência, personalidade e força aos animais em uma época em que “animal” havia se tornado uma expressão de desprezo. Ximénez, assim, contribuiu para uma crítica emergente ao colonialismo europeu no século XVIII, representando uma dissidência dentro da própria Ordem Dominicana, que passava por uma crise interna. A premissa dominicana de que todos os homens possuem razão significava, em teoria, que a evangelização pacífica, por meio da persuasão, era possível. No entanto, com o tempo, a prática mostrou que essa técnica frequentemente exigia métodos coercitivos para ser eficaz, o que ficou evidente tanto nas Américas quanto nas Inquisições Espanhola e Portuguesa.
Ximénez não foi o único missionário a questionar o imperialismo europeu e seus métodos. Outros frades dominicanos, como Antonio de Montesinos, Pedro de Córdoba e Bartolomé de las Casas, documentaram como as tentativas de conversão envolviam violência. Embora não fossem abertamente militantes como outras ordens, os dominicanos viram seus apelos calmos à “razão” se tornarem parte de situações onde a aplicação da força era necessária.
A Razão e a Importância do Corpo na Visão Maia
Para os Maias, a razão era sempre incorporada; o que afeta o corpo também afeta a mente. As condições físicas e o ambiente influenciam o pensamento, e sentimentos e sensações podem ser tão impactantes quanto deduções lógicas. Por essa razão, a “razão” em si nunca foi uma categoria de valor supremo para eles. O corpo físico e a comunidade tinham maior importância, sendo inseparáveis de qualquer ideia de alma.
No Popol Vuh, a separação dos humanos dos deuses e do mundo animal marca uma mudança que pode ser comparada com a “queda” na visão católica. A religião maia valorizava o corpo – não apenas o humano, mas também o dos animais e dos deuses. A realidade fluida dos maias entre corpos divinos, animais e humanos, e o lamento pela separação desses corpos, é um lamento pela perda dessa liberdade física essencial.
A Tradução e a Adaptação do Popol Vuh por Ximénez
Ximénez trabalhou a partir de um texto que lhe foi dado por um indígena anônimo ou a partir de uma transcrição – nunca encontrada – da língua K’iche’ em caracteres, ou ainda pode ter transcrito diretamente uma recitação oral. Ele então traduziu essa narrativa para o espanhol, provavelmente adaptando alguns elementos para melhor atender ao projeto católico, além de acrescentar um ensaio sobre o vocabulário K’iche’, um tratado missionário, um prólogo de tradutor e anotações. O Popol Vuh, uma obra mítica indígena, tornou-se, através de Ximénez, uma parte do projeto evangelizador da Igreja.
O estudioso Néstor Quiroa argumenta que Ximénez fez parte de um projeto para “extirpar” a religião Maia-K’iche’, citando Fray Antonio de Remesal, cronista oficial da Ordem Dominicana: “Ut prius evellant de inde plantent” ou “Primeiro arranque para depois plantar”. Os esforços iniciais de evangelização tentaram estabelecer uma síntese entre a teologia Maia e o catolicismo, equiparando Tz’aqol-B’itol a Deus, mas, quando Ximénez escreveu, essa prática já não era comum. No início do século XVIII, os católicos geralmente consideravam os humanos como superiores aos indígenas, e os indígenas como ligeiramente superiores aos animais.
Preservação Cultural e os “Vieses” da Evangelização
Esses projetos envolvem o que hoje chamamos de “viés”, mas através deles, tradições indígenas foram preservadas. No manuscrito de Ximénez, o que chama atenção é o formato de duas colunas, com o K’iche’ e o espanhol lado a lado, fisicamente colocando as duas tradições linguísticas e culturais uma ao lado da outra. Embora na prática essa paridade fosse ilusória, dado que um padre espanhol interpretou o material, o formato sugere uma utopia de comparação cultural, na qual culturas poderiam dialogar como iguais. Esse encontro entre dois sistemas de crenças ricos, a cosmologia maia e a teologia católica, embora não plenamente realizado, apresenta um potencial inexplorado.
Ainda há muito a ser feito para criar um quadro comparativo que permita dialogar entre essas tradições e cosmologias – com suas críticas e dúvidas internas. Literatura comparada e história são fundamentais enquanto a humanidade continua a questionar a relevância do mundo não humano em uma narrativa de progresso tecnológico, num contexto cada vez mais global. Tradições precisam ser estudadas lado a lado, sem serem reduzidas moralmente a colonizador e colonizado, ou relegadas a categorias distantes. Como outros linguistas da América Latina, Ximénez, com seu trabalho de preservação linguística, tornou-se parte do processo de colonização, mas seu trabalho preservou tradições indígenas que de outra forma poderiam ter sido perdidas.
A Importância dos Animais e a Convivência com o Mundo Não Humano
Aqui, o animal retorna em toda sua imponência, rugindo, caminhando, zumbindo e voando. Hoje, muitos reconhecem o desafio de construir uma convivência sustentável com formas de vida não humanas, que vão desde plantas a vírus. Nossa relação com a natureza pode envolver violência e desigualdade, mas também equilíbrio, empatia, reciprocidade e um pensamento cíclico. Os animais, presentes em obras de Aristóteles ao Atharvaveda e Arendt, sempre foram fundamentais na política, porque a categoria animal parece tanto incluir quanto excluir nós, humanos.
Um produto inevitavelmente híbrido e palimpséstico das culturas maia e dominicana espanhola, o Popol Vuh fornece uma genealogia complexa da mudança na relação entre os mundos animal, humano e divino, recuperando um movimento fluido entre eles. Ele explora alternativas à razão iluminista, partindo não de um humanismo associado à nacionalidade e aos direitos humanos, mas de um senso cosmológico de pertencimento a múltiplas formas de existência e a um pensamento planetário que busca universais além do capitalismo. Um verdadeiro livro de comunidade e um ato imaginativo em camadas, o Popol Vuh continua a desafiar a autoria única, o isolamento cultural e a dominação humana.
Este artigo foi desenvolvido com base no conteúdo do site: https://aeon.co/essays/belonging-among-the-beasts-and-the-gods-in-mayan-cosmology
André Pimenta é um apaixonado por mitologia, folclore e histórias e estórias fantásticas. Contribuidor dedicado do Portal dos Mitos. Com uma abordagem detalhista, ele explora e compartilha os mistérios das lendas sobre seres e criaturas fantásticas do Brasil e do mundo.