A cada Dia dos Namorados, quando vejo imagens do deus alado e rechonchudo Cupido, com seu arco e flecha mirando suas vítimas desprevenidas, recorro ao meu conhecimento de poesia e mitologia grega antiga para refletir sobre essa imagem curiosa e sobre a verdadeira natureza do amor.
A História do Cupido: Amor e Contradição
Na cultura romana, Cupido era filho da deusa Vênus, amplamente conhecida hoje como a deusa do amor, e de Marte, o deus da guerra. No entanto, para as audiências antigas, como mostram os mitos e textos, Vênus era, na verdade, a divindade patrona do “ato sexual” e da “procriação”. O nome Cupido deriva do verbo latino cupere, que significa desejo, amor ou luxúria. A figura de Cupido, com o corpo de um bebê e armas mortais nas mãos, reflete uma contradição intrigante: ele é ao mesmo tempo um símbolo de conflito e de desejo.
Essa complexa história muitas vezes não se reflete nas celebrações modernas do Dia dos Namorados. A Festa de São Valentim começou como uma comemoração de São Valentim de Roma. No entanto, como explica Candida Moss, uma estudiosa de teologia e antiguidade tardia, o romance que vemos nas propagandas da data pode ter mais a ver com a Idade Média do que com a Roma Antiga.
O Significado de Cupido na Idade Média e Renascimento
Durante a Idade Média e o Renascimento, o Cupido alado era uma figura favorita de artistas e autores, mas ele não representava apenas o amor romântico. Cupido também simbolizava algo mais profundo, relacionado ao desejo e ao conflito interior.
O Nascimento de Cupido: Sexo e Guerra
O Cupido dos romanos é o equivalente ao deus grego Eros, de onde vem a palavra “erótico”. Na Grécia antiga, Eros era frequentemente visto como filho de Ares, o deus da guerra, e de Afrodite, a deusa da beleza, sexo e desejo.
Nas primeiras representações gregas, Eros aparecia frequentemente ao lado de outros deuses chamados Erotes, um grupo de divindades aladas associadas ao amor e ao ato sexual. Essas figuras eram retratadas como adolescentes mais velhos, com corpos alados, e às vezes personificadas em três formas: eros (luxúria), himeros (desejo) e pothos (paixão).
No entanto, também havia versões mais jovens e brincalhonas de Eros. Em representações artísticas do século V a.C., Eros era mostrado como uma criança puxando uma carruagem em vasos de figuras vermelhas. Uma famosa estátua de bronze de Eros dormindo, datada do período helenístico no século II a.C., também o retrata como uma criança.
Cupido na Roma Antiga
Já no Império Romano, a imagem de um Cupido rechonchudo se tornou mais comum. O poeta romano Ovídio escreveu sobre dois tipos de flechas de Cupido: uma que desperta um desejo incontrolável e outra que faz sua vítima sentir repulsa. Esse tipo de representação, em que deuses gregos e romanos possuíam o poder tanto para o bem quanto para o mal, era comum. O deus Apolo, por exemplo, podia curar pessoas de doenças ou causar pragas que devastariam cidades inteiras.
O Poder do Desejo em Mitos Gregos
Nos mitos gregos mais antigos, Eros não era apenas uma força de distração. No início da “Teogonia” de Hesíodo – um poema que narra a criação do universo por meio da reprodução dos deuses –, Eros aparece como uma força natural necessária, já que ele “perturba os membros e vence a mente e os conselhos de todos os mortais e deuses”. Essa linha é um reconhecimento do poder do desejo sexual, que nem mesmo os deuses poderiam controlar.
Equilibrando Conflito e Desejo: As Lições do Cupido Mítico
Eros, o equivalente grego de Cupido, não era apenas sobre o ato sexual. Para o filósofo grego Empédocles, Eros era associado a Éris, a deusa da discórdia e do conflito, como as duas forças mais poderosas no universo. Esses dois conceitos, atração e divisão, representavam as forças naturais que criam e destroem a vida. Para Empédocles e outros filósofos, Eros e Éris simbolizavam o equilíbrio necessário entre união e separação em nível elemental.
Desejo e Perigo
No mundo antigo, o sexo e o desejo eram considerados partes essenciais da vida, mas perigosos se assumissem o controle de forma desequilibrada. Um dos textos mais influentes sobre Eros é o Banquete de Platão, um diálogo que discute diferentes ideias sobre o desejo. A obra aborda desde os efeitos do desejo no corpo até sua relação com a essência do ser humano.
Uma das passagens mais marcantes do Banquete é o discurso do personagem Aristófanes, que explica a origem do desejo de uma maneira divertida. Segundo ele, todos os humanos eram, originalmente, dois seres fundidos em um. No entanto, os deuses os separaram como punição por sua arrogância. Assim, o desejo se torna uma busca incessante para recuperar essa unidade perdida.
A História de Cupido e Psique
Hoje, a ideia de que “você é o que ama” pode parecer comum, mas para os filósofos antigos, você é tanto o que ama quanto a forma como ama. Isso é ilustrado em uma das narrativas mais famosas de Cupido, presente no romance latino “O Asno de Ouro”, escrito pelo norte-africano Apuleio, no século II. Nesta história, Cupido se torna o centro de uma reflexão sobre luxúria e filosofia.
A trama gira em torno de Psique, uma jovem que recebe visitas noturnas de Cupido, mas sem jamais poder ver seu rosto. Quando ela quebra essa confiança e ilumina o quarto para vê-lo, Cupido é queimado pela lâmpada e foge. Psique, então, precisa realizar tarefas quase impossíveis impostas por Vênus para se reconciliar com seu amor.
Ao longo dos anos, muitos autores interpretaram essa história como uma alegoria da relação entre a alma humana e o desejo. Interpretações cristãs a viram como uma narrativa sobre a queda da alma devido à tentação. No entanto, essas interpretações muitas vezes ignoram o fato de que, no final, Psique alcança a imortalidade para ficar ao lado de Cupido e dá à luz um filho chamado “Prazer”.
Equilíbrio Entre Corpo e Espírito
A história de Apuleio nos ensina sobre a importância de equilibrar o corpo e o espírito. O nascimento de “Prazer” não ocorre durante os encontros secretos de Psique e Cupido, mas sim após ela superar os desafios impostos pela deusa Vênus e reconciliar sua mente com o coração.
O Cupido moderno, com sua imagem brincalhona de arqueiro alado, esconde uma história rica e profunda sobre o poder do desejo. Sua trajetória nos mitos gregos e romanos revela como o desejo pode trazer tanto prazer quanto perigo. Ao revisitar essas histórias, aprendemos sobre a complexidade do desejo e como ele molda a experiência humana.
FAQ
- Quem é Eros na mitologia grega? Eros é o deus do desejo, equivalente ao Cupido na mitologia romana
- O que Aristófanes disse sobre o desejo no Banquete? Aristófanes afirmou que o desejo surge da separação original dos humanos, que antes eram dois seres em um
- O que representa a história de Cupido e Psique? A história simboliza a jornada da alma humana em busca da reconciliação entre desejo e razão
- Por que Psique foi punida por Cupido? Psique quebrou a confiança de Cupido ao acender uma lâmpada para vê-lo, o que causou sua fuga
- Qual é a moral da história de Cupido e Psique? A história ensina sobre o equilíbrio necessário entre os desejos do corpo e os anseios do espírito
André Pimenta é um apaixonado por mitologia, folclore e histórias e estórias fantásticas. Contribuidor dedicado do Portal dos Mitos. Com uma abordagem detalhista, ele explora e compartilha os mistérios das lendas sobre seres e criaturas fantásticas do Brasil e do mundo.