Os Raptores de Corpos nas Lendas Aborígenes da Austrália

No coração das tradições aborígenes da Austrália, existem histórias assustadoras sobre criaturas que espreitam na vastidão do outback. Entre elas, destacam-se os Ngayurnangalku, seres ferozes e famintos que habitam o leito seco de um lago esquecido pela civilização moderna.

O Conflito Entre Lenda e Mineração

Em 2018, um artigo financeiro tratava com leve tom de ironia um problema incomum enfrentado por uma mineradora em um novo projeto na Austrália Ocidental. A empresa estabeleceu suas operações em uma vasta salina seca, mas, de acordo com a tradição do povo Martu – habitantes ancestrais da região de Pilbara –, esse terreno é o lar de monstros que devoram humanos.

A empresa Reward Minerals, contudo, ignorou os avisos culturais. Para ela, o Lago Disappointment, localizado no árido outback de Pilbara, representava uma oportunidade de exploração rentável. Comparado ao potencial produtivo de Saskatchewan, uma importante região de mineração de potássio no Canadá, o local despertou o interesse econômico. No entanto, para os Martu, o lago – conhecido em sua língua como Kumpupirntily – é um território perigoso que deve ser evitado a qualquer custo.

Quem são os Ngayurnangalku?

O nome Ngayurnangalku pode ser traduzido como “vai me comer”, deixando claro o comportamento predatório dessas criaturas. De acordo com as lendas, esses seres carecas e com presas afiadas vivem sob a superfície seca do lago, em um universo próprio. Emergindo apenas para capturar quem se atreve a passar por cima deles, os Ngayurnangalku usam suas garras longas e curvas para arrastar as vítimas para as profundezas.

A Temida Paisagem de Kumpupirntily

Além do medo provocado pelas criaturas, a própria paisagem de Kumpupirntily é inóspita e sinistra. O pesquisador John Carty, da Australian National University, descreve o lago como “uma planície imensa e implacável de sal branco, cegante ao sol, cercada por colinas de areia”. Os Martu nunca pisam na superfície do lago, e, quando precisam passar por perto, fazem isso o mais rápido possível, com um misto de respeito e medo.

O Significado Espiritual de Kumpupirntily e o “Dreaming” Aborígene

Para os povos aborígenes australianos, o mundo espiritual não se limita ao passado ou ao presente: ele se estende por todo o tempo e espaço, formando uma rede viva que conecta tudo. Esse conceito é conhecido como “The Dreaming”, ou Jukurrpa, entre os Warlpiri, e abrange mitos de criação, cosmologia e relações com o mundo físico e espiritual. Kumpupirntily, o lar dos Ngayurnangalku, é uma dessas manifestações onde passado, presente e futuro coexistem em um só plano.

Avisos e Precauções: O Perigo Sempre Presente

Desde cedo, os viajantes Martu são ensinados a temer as terras em torno de Kumpupirntily. As histórias não são apenas narrativas antigas, mas guias práticos para a sobrevivência. Quando precisam se aproximar dessa área perigosa, eles tomam cuidado para não chamar a atenção dos Ngayurnangalku. Os sinos dos cavalos são silenciados, e o vento é um aliado essencial, pois ajuda a mascarar a presença humana. Como explicou o artista aborígene Yunkurra Billy Atkins, em 2008:
“Aquele território é perigoso. Estou dizendo que aquele bando de canibais está lá e não são nada bons. Quando o vento sopra, podemos passar. Se o vento parar, não podemos ir mais longe, porque [eles] estão lá.”

Criaturas e Espíritos no Cotidiano Aborígene

Espíritos, monstros e seres como os Ngayurnangalku são parte fundamental das crenças dos povos aborígenes australianos. Não são figuras distantes ou exclusivas de cerimônias religiosas; fazem parte do cotidiano. Segundo Yasmine Musharbash, professora de antropologia social e cultural na Australian National University, monstros e espíritos estão presentes em todas as esferas da vida aborígene, independentemente da tribo ou ambiente.

Em seu trabalho de campo na comunidade de Yuendumu, no Território do Norte, Musharbash observou a diversidade desses seres:
“Há todos os tipos de criaturas que fazem coisas diferentes. Algumas são perigosas, outras são travessas, outras engraçadas. Elas fazem parte do mundo em que as pessoas vivem.”

O “Dreaming” como Base da Cosmovisão Aborígene

A espiritualidade aborígene é uma construção complexa, na qual o Dreaming é uma base essencial. Mesmo com mais de 300 idiomas e grupos espalhados por diversos climas e paisagens, todos os povos aborígenes compartilham o conceito do Dreaming como forma de entender o mundo. Cada grupo, ou “Country”, tem seu próprio Dreaming, que inclui todos os aspectos do território, como animais, plantas e até a língua falada. Ao mesmo tempo, todos esses Dreamings se interconectam, assim como os diferentes territórios.

Uma Rede de Conexões Espirituais

Musharbash descreve o Dreaming como uma constelação espiritual que abrange todos os aspectos da existência:
“Cada território tem seu próprio Dreaming, mas todos os Dreamings estão relacionados, da mesma forma que todos os territórios estão conectados.”
O Dreaming não se limita a eventos cronológicos; ele engloba passado, presente e futuro simultaneamente, incluindo tudo, desde o espaço físico e as pessoas até as estrelas e as formas de relacionamento. Nas palavras de Musharbash:
“A ênfase principal é que tudo está relacionado a tudo, através do tempo e do espaço.”

A Natureza Atemporal do Dreaming e os Ngayurnangalku

A característica não linear e abrangente do Dreaming explica como os temíveis Ngayurnangalku são vistos ao mesmo tempo como criaturas ancestrais e seres ainda presentes sob as areias de Kumpupirntily. Para os aborígenes, passado, presente e futuro coexistem, de modo que esses monstros fazem parte tanto da história antiga quanto da realidade atual. Essa percepção também explica por que os Martu e outros habitantes locais evitam a área sempre que possível.

A Conexão Ancestral que Persiste

Mesmo diante da modernidade e da exploração econômica, a crença nos Ngayurnangalku permanece viva. Para os povos aborígenes, esses monstros não são apenas figuras do passado, mas uma ameaça contínua, reforçando o cuidado que todos devem ter ao passar pelas terras sagradas. Kumpupirntily não é apenas um local físico, mas um espaço espiritual onde os perigos do Dreaming ainda vigem.

O Choque Entre Cultura e Mineração

Contudo, essa relação respeitosa com a terra não é compartilhada pelos mineradores. Para os trabalhadores que exploram a região em busca de potássio, Kumpupirntily é apenas uma nova fronteira econômica a ser superada. Enquanto os aborígenes evitam a área, guiados por gerações de conhecimento espiritual, os mineradores avançam, indiferentes às advertências ancestrais e aos riscos culturais.

Este artigo foi desenvolvido com base no conteúdo do site: https://www.atlasobscura.com/articles/monster-mythology-ngayurnangalku

Deixe um comentário