Uma nova coleção de ensaios explora como as figuras femininas vilanescas da antiguidade clássica continuam a ressoar na sociedade ocidental contemporânea.
Monstros e a Humanidade: O Que Eles Revelam?
Os monstros revelam muito mais sobre os seres humanos do que imaginamos. Essas criaturas alienígenas, rastejantes, com presas afiadas, asas e características aterrorizantes que habitam os mitos servem há séculos para ajudar as sociedades a definir suas fronteiras culturais e a responder uma antiga pergunta: O que é considerado humano e o que é considerado monstruoso?
Nos mitos clássicos gregos e romanos, que até hoje permeiam o imaginário ocidental, um número surpreendente dessas criaturas é retratado como sendo do gênero feminino. Essas vilãs, como escreveu a classicista Debbie Felton em um ensaio de 2013, “refletem o medo masculino do potencial destrutivo das mulheres. Os mitos, até certo ponto, cumprem a fantasia masculina de dominar e controlar o feminino.”
Medo e Desejo: As Origens dos Monstros Femininos
Autores antigos projetaram seus medos e desejos em histórias sobre mulheres monstruosas. No épico Metamorfoses, escrito no século I d.C., o poeta romano Ovídio narra a história de Medusa, uma Górgona assustadora, cujos cabelos de serpente transformavam em pedra qualquer um que cruzasse seu olhar. Anteriormente, na Odisseia de Homero, composta entre os séculos VII e VIII a.C., o herói grego Odisseu precisa escolher entre enfrentar Cila, uma criatura de seis cabeças e doze patas que emite latidos, e Caríbdis, um monstro marinho que simboliza a destruição. Ambas são descritas como inequivocamente femininas.
Uma Realidade Perdida: Mitos e Reflexos de um Passado Antigo
Essas histórias podem soar fantásticas hoje, mas para os antigos, elas refletiam uma realidade “quase histórica”, um passado perdido onde humanos conviviam com heróis, deuses e o sobrenatural, como explicou a curadora Madeleine Glennon em um artigo de 2017 para o Museu Metropolitano de Arte (MET). Além disso, os monstros femininos dessas narrativas revelam mais sobre as limitações patriarcais impostas às mulheres do que sobre as próprias mulheres. Medusa, por exemplo, despertava temor por ser simultaneamente bela e grotescamente horrível; Caríbdis aterrorizava Odisseu e seus homens porque representava um abismo de fome insaciável.
Os Monstros Femininos como Reflexos do Patriarcado
Monstros femininos são “as histórias que o patriarcado conta para si mesmo antes de dormir”, reforçando expectativas sobre o corpo e o comportamento das mulheres, argumenta a jornalista e crítica Jess Zimmerman em Mulheres e Outros Monstros: Construindo Uma Nova Mitologia. Nesta coleção de ensaios, publicada pela Beacon Press, ela reavalia os monstros da antiguidade sob uma perspectiva feminista. “Mulheres foram monstros, e monstros foram mulheres em séculos de histórias”, escreve no livro, “porque as histórias são uma forma de codificar essas expectativas e transmiti-las adiante.”
Jess Zimmerman, uma entusiasta de mitologia criada com o clássico O Livro de Mitos Gregos de D’Aulaires, escreve ensaios pessoais que combinam análise literária com memórias, tratando cada monstro como uma metáfora ampliada para as expectativas que ainda pesam sobre as mulheres hoje em dia. Em suas reflexões, ela se apoia em traduções e pesquisas de outros estudiosos da antiguidade clássica, incluindo o especialista em “teoria dos monstros” Jeffrey Jerome Cohen, Debbie Felton sobre monstruosidade no mundo antigo, Kiki Karoglou e sua análise de Medusa, Robert E. Bell em Mulheres da Mitologia Clássica e Marianne Hopman, que escreveu sobre Cila.
Reimaginando o Significado das Mulheres Monstruosas
Zimmerman se une a um grupo de escritores contemporâneos que recriaram, de forma criativa, o significado dessas mulheres monstruosas. Entre eles, Muriel Rukeyser, que escreveu poesia sobre a Esfinge; Margaret Atwood, que revisitou a história de Penélope, esposa de Odisseu; e Madeline Miller, autora do romance Circe, lançado em 2018, que reimagina a feiticeira grega.
Embora monstros femininos aterrorizantes surjam em tradições culturais ao redor do mundo, Zimmerman decidiu focar na antiguidade grega e romana, que deixaram marcas profundas na cultura americana ao longo das gerações. “A mitologia grega [teve] uma influência pesada na literatura renascentista, e a literatura renascentista [teve] uma forte influência nas nossas ideias atuais sobre o que constitui qualidade literária, sempre a partir de uma perspectiva muito branca, cis[gênero] e masculina,” explica ela em uma entrevista.
Desvendando os Mitos de Seis Monstros Femininos
Abaixo, exploramos como os mitos por trás de seis “terríveis” monstros, desde a onisciente Esfinge até a Chimera, que expele fogo, e a menos conhecida metamorfoseadora Lamia, podem iluminar questões do feminismo contemporâneo. O livro de Zimmerman faz uma análise abrangente dessas histórias e de sua trajetória histórica, conectando o passado antigo à política moderna. “Minha esperança é que, quando você voltar aos textos originais para ler essas histórias, possa pensar: ‘O que essa história está tentando me transmitir?’”, reflete Zimmerman.
Reavaliando os “Defeitos” das Criaturas Femininas
Zimmerman também propõe que as qualidades que tornavam essas criaturas femininas “monstruosas” aos olhos dos antigos poderiam, na verdade, ser seus maiores pontos fortes. E se, em vez de temer esses monstros antigos, os leitores contemporâneos os abraçassem como verdadeiros heróis? “As características que [os monstros] representam—aspiração, conhecimento, força, desejo—não são repulsivas,” escreve Zimmerman. “Nas mãos dos homens, sempre foram vistas como heroicas.”
Cila e Caríbdis: O Desafio de Odisseu
Enquanto Odisseu e seus homens tentam navegar de volta para Ítaca na obra de Homero, eles se deparam com um estreito canal repleto de perigos em ambos os lados. De um lado, Cila—a criatura de seis cabeças e doze pernas, com pescoços que se estendem de forma assustadora e cabeças de lobo que agarram e devoram marinheiros desavisados—habita uma caverna no topo de um penhasco. Do outro lado do estreito, a monstruosa Caríbdis, uma força do oceano, ameaça engolir o navio inteiro com seus redemoinhos violentos.
Além do Obstáculo Heroico
Essa dupla de monstros, Cila e Caríbdis, chamou a atenção de Zimmerman porque “elas são representadas como obstáculos que Odisseu precisa superar”, observa ela. “Assim, elas se tornam parte da narrativa heroica dele. Mas será que esse é seu único propósito? Ou pelo menos, isso precisa ser seu único propósito?”
Homero descreveu Cila como um monstro com poucas características humanas. Mas, na reinterpretação de Ovídio, escrita cerca de 700 anos depois, Circe, em um acesso de ciúmes, transforma as pernas de Cila em uma massa contorcida de cães que latem incessantemente. Zimmerman destaca em Mulheres e Outros Monstros que o que torna Cila assustadora nessa versão da história é “o contraste entre seu rosto belo e sua parte inferior monstruosa”—uma metáfora, segundo ela, para o nojo e o medo que as sociedades patriarcais sentem em relação aos corpos femininos quando estes se comportam de forma indomável.
Caríbdis: Uma Força da Natureza ou Monstro Mitológico?
Quanto a Caríbdis, o historiador grego Políbio, do século II a.C., foi o primeiro a sugerir que o monstro poderia ter uma correspondência com uma realidade geográfica—um redemoinho que ameaçava os marinheiros reais no Estreito de Messina. Na Odisseia, o herói grego escapa por pouco das garras de Caríbdis, agarrando-se aos restos despedaçados de seu navio.
Reinterpretando as Monstruosidades
“[A] voracidade é [a arma de Caríbdis] e seu dom”, escreve Zimmerman, propondo uma nova dinâmica para a história. “Que força teria a heroína-monstro com fome incontrolável: o suficiente para engolir um homem.”
Lamia: A Mãe Monstruosa da Mitologia
Lamia, uma das figuras demoníacas menos conhecidas da mitologia clássica, possui uma habilidade peculiar de transformação. Ela surge na comédia Paz do dramaturgo grego Aristófanes, do século V a.C., desaparecendo em seguida até ressurgir na literatura europeia dos séculos XVII e XVIII, especialmente na poesia romântica de John Keats.
As Muitas Faces de Lamia
Algumas histórias descrevem Lamia como tendo a parte superior do corpo de uma mulher e a parte inferior de uma serpente; seu nome em grego antigo pode ser traduzido como “tubarão fora-da-lei”. Outras narrativas a retratam como uma mulher com patas, escamas e até características masculinas, ou mesmo como um enxame de monstros vampíricos. Independentemente da versão, sua principal característica se mantém: Lamia rouba e devora crianças.
A Dor como Motivação
O sofrimento é o motor de suas ações. Na mitologia, Lamia teve filhos com Zeus, mas eles foram mortos por Hera, a esposa de Zeus, em um acesso de fúria. Em sua dor, Lamia arranca os próprios olhos e vagueia em busca dos filhos dos outros; em algumas versões, Zeus lhe concede o poder de retirar e recolocar seus olhos à vontade. (Assim como sua história de origem, os motivos para esse presente variam entre os relatos. Uma explicação plausível, segundo Zimmerman, é que Zeus teria oferecido esse dom como um pequeno gesto de misericórdia, permitindo que Lamia deixasse de ver a imagem constante de seus filhos mortos.)
A Representação do Medo Materno
Zimmerman sugere que Lamia simboliza um medo profundo sobre as ameaças que as mulheres podem representar para as crianças, dado o papel que a sociedade lhes atribui como principais cuidadoras. Como Felton escreveu em 2013, “O fato de que as mulheres também poderiam, por vezes, gerar filhos com anomalias físicas apenas reforçava a percepção de que elas eram potencialmente aterrorizantes e destrutivas.”
As mulheres são esperadas a cuidar dos filhos, mas a sociedade continua “preocupada que elas falhem em sua obrigação de serem mães e cuidadoras,” afirma Zimmerman. Se uma mulher rejeita a maternidade, demonstra ambivalência sobre ela, ama demais seu filho ou o ama de menos, todos esses atos são percebidos como violações, ainda que em diferentes graus.
A Maternidade Desviada e o Monstro
“Desviar-se de qualquer forma da narrativa prescrita de maternidade é ser transformada em monstro, uma destruidora de crianças,” escreve Zimmerman. Esse medo, no entanto, não se limita aos mitos gregos. Personagens como La Llorona na América Latina, a Penanggalan na Malásia e Lamashtu na Mesopotâmia também roubavam crianças, reforçando um arquétipo de mulher-monstro que desafia os papéis esperados de cuidado e proteção.
Medusa: A Beleza e o Monstro
Como muitos monstros mitológicos, Medusa encontra seu fim nas mãos de um herói masculino. Perseu consegue matá-la, mas apenas com a ajuda de uma série de ferramentas extremamente poderosas: sandálias aladas do deus mensageiro Hermes; um capacete de invisibilidade de Hades, deus do submundo; e um escudo espelhado da deusa da sabedoria e da guerra, Atena.
A Força de Medusa e a Ajuda Divina de Perseu
Perseu precisou de todo o reforço possível. Como uma das Górgonas—um trio de mulheres aladas com serpentes venenosas no lugar dos cabelos—Medusa era considerada uma das criaturas mais temidas e poderosas a dominar a mitologia grega antiga. Em algumas versões de sua origem, as irmãs descendem de Gaia, a personificação da Terra. Qualquer um que olhasse diretamente para elas seria transformado em pedra.
Entre as três, Medusa era a única mortal. Na narrativa de Ovídio, ela foi uma vez uma jovem bela. No entanto, após ser violentada por Poseidon, o deus do mar, no templo de Atena, a deusa buscou vingança pelo que considerava uma profanação. Em vez de punir Poseidon, Atena transformou Medusa em uma monstruosa criatura.
A Transformação de Medusa: Da Androgênia à Sedução Fatal
Curiosamente, as representações artísticas de Medusa mudaram drasticamente ao longo do tempo, tornando-se cada vez mais marcadas pelo gênero, como explicou Karaglou, curadora da exposição Beleza Perigosa: Medusa na Arte Clássica, em uma entrevista de 2018. Na exposição, Karaglou reuniu mais de 60 representações do rosto de Medusa. As esculturas da criatura do período arcaico grego, entre 700 e 480 a.C., são em sua maioria figuras andróginas. Criadas para serem feias e ameaçadoras, elas exibem barbas, presas e expressões de fúria.
Com o passar dos séculos, as estátuas de Medusa se tornaram muito mais reconhecidamente belas. “A beleza, assim como a monstruosidade, fascina, e a beleza feminina em particular foi percebida—e, até certo ponto, ainda é—como algo tanto encantador quanto perigoso, ou até fatal,” escreveu Karaglou em um ensaio de 2018. Ao longo do tempo, a beleza dúbia de Medusa se tornou sinônimo do perigo que ela representava, consolidando o estereótipo da sedutora vilanesca que persiste até os dias atuais.
A Medusa de Duas Faces: A Arte que Reflete o Medo
A evolução artística de Medusa reflete uma mudança na forma como a sociedade encara as mulheres e seu poder. No início, ela era um monstro assustador, marcado por traços masculinos que a tornavam uma ameaça clara e direta. Com o tempo, essa imagem foi sendo suavizada e transformada em uma figura feminina de beleza perigosa, uma combinação de encanto e ameaça. Essa transformação revela uma complexa interação entre a atração e o temor que a figura feminina sempre inspirou.
Quimera: A Criatura Híbrida e Seus Significados
A Quimera, mencionada na Teogonia de Hesíodo do século VII a.C. e na Ilíada de Homero, é um monstro composto por partes díspares: leão na parte dianteira, cabra no meio e dragão ou serpente na extremidade. Ela cuspia fogo, voava e devastava cidades indefesas. Em particular, aterrorizou a região da Lícia, um antigo distrito marítimo na atual sudoeste da Turquia, até que o herói Belerofonte conseguiu cravar uma lança com ponta de chumbo em sua garganta, sufocando-a até a morte.
A Quimera e Suas Raízes na Realidade
Entre todas as criaturas fictícias, a Quimera talvez tenha uma das conexões mais fortes com a realidade. Vários historiadores posteriores, incluindo Plínio, o Velho, argumentam que sua história é um exemplo de “euhemerismo”—um termo que se refere à possibilidade de que antigos mitos correspondam a fatos históricos. No caso da Quimera, os habitantes da Lícia podem ter sido inspirados pela atividade geológica próxima ao Monte Quimera, uma área geotermicamente ativa onde gás metano se inflama e escapa por rachaduras nas rochas, criando pequenas explosões de chamas.
“Você pode caminhar por lá hoje, e as pessoas fervem chá em cima desses pequenos surtos de atividade geológica,” comenta Zimmerman.
A Quimera e a Dualidade Feminina
Para os antigos gregos que contavam as histórias sobre o monstro, a combinação única de ferocidade animal e a presença de uma cabra na Quimera representava um horror híbrido e contraditório. Essa combinação refletia a maneira como as mulheres eram vistas: ao mesmo tempo símbolos de domesticidade e potenciais ameaças. De um lado, como escreve Zimmerman, o corpo de cabra da Quimera “carrega todos os fardos do lar, protege os bebês… e os alimenta com seu próprio corpo.” Do outro, seus elementos monstruosos “rugem, gritam e cospem fogo.”
Ela acrescenta que o que a cabra traz para a Quimera “não é uma nova força, mas um outro tipo de temor: o medo do irreduzível, do imprevisível.”
O Legado da Quimera: Do Mito à Ciência
A lenda da Quimera se mostrou tão influente que até mesmo entrou na linguagem moderna. Nas comunidades científicas, o termo “quimera” é usado para descrever qualquer criatura que possui dois conjuntos de DNA. De forma mais geral, o termo também se refere a um devaneio ou criação imaginária, uma figura fantástica da imaginação de alguém.
A Esfinge: Sabedoria e Mistério na Antiguidade
Uma das figuras mais reconhecíveis da antiguidade, a Esfinge foi popular no Egito, na Ásia e na Grécia, assumindo diferentes significados em cada uma dessas culturas. No Egito antigo, por exemplo, a estátua de 20 metros de altura com corpo de leão que guarda a Grande Pirâmide de Gizé provavelmente representava um símbolo masculino de poder.
A Esfinge na Grécia: Conhecimento e Enigmas
No Mediterrâneo, a Esfinge foi retratada de maneira diferente. O dramaturgo Sófocles, em sua tragédia Édipo Rei do século V a.C., descreve a Esfinge como um monstro feminino, com corpo de felino, asas de pássaro e um vasto conhecimento de enigmas. Ela viaja de terras estrangeiras até Tebas, devorando todos que não conseguem responder ao seu enigma: “O que anda com quatro patas de manhã, duas ao meio-dia e três à tarde?” (Resposta: o ser humano, que engatinha quando bebê, caminha ereto na idade adulta e usa uma bengala na velhice).
Quando Édipo desvenda seu enigma, a Esfinge fica tão desesperada que se atira à própria morte. Segundo Zimmerman, essa é a conclusão lógica de uma cultura que punia as mulheres por reter conhecimento. O conhecimento é poder—e, por isso, ao longo da história, os homens excluíram as mulheres do acesso à educação formal, argumenta Zimmerman.
A Esfinge e o Desafio ao Conhecimento Masculino
Para Zimmerman, “a história da Esfinge é a história de uma mulher com perguntas que os homens não conseguem responder.” Ela escreve que os homens não aceitaram bem esse desafio intelectual na Grécia do século V a.C., assim como, em muitos casos, não aceitam ainda hoje. A Esfinge, com seu papel de guardiã do conhecimento e sua capacidade de desafiar a sabedoria masculina, simboliza o medo e a resistência cultural diante das mulheres que detêm e compartilham saberes.
Este artigo foi desenvolvido com base no conteúdo do site: https://www.smithsonianmag.com/arts-culture/meet-female-monsters-greek-mythology-medusa-sphinx-180977364/
André Pimenta é um apaixonado por mitologia, folclore e histórias e estórias fantásticas. Contribuidor dedicado do Portal dos Mitos. Com uma abordagem detalhista, ele explora e compartilha os mistérios das lendas sobre seres e criaturas fantásticas do Brasil e do mundo.